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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

ECONOMIA POLÍTICA - Introdução

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A Economia Política aborda questões ligadas diretamente a interesses materiais (econômicos e sociais), não podendo haver “neutralidade”, pois suas teses e conclusões estão sempre conectadas a interesses de grupos e classes sociais.

Na Economia Política clássica (Adam Smith e David Ricardo), encontram-se duas características centrais:

Primeira --> a natureza dessa teoria social: não se tratava de uma disciplina particular, especializada, que procurava “recortar” da realidade social um objeto específico (o econômico) e analisá-lo de forma autônoma. À Economia Política interessava compreender o conjunto das relações sociais que estava surgindo na crise do Antigo Regime – as transformações em curso na sociedade, a partir da generalização das relações mercantis e de sua extensão ao mundo do trabalho. A Economia Política clássica não desejava constituir-se simplesmente como uma disciplina científica; almejava compreender o modo de funcionamento da sociedade que estava nascendo das entranhas do mundo feudal; a Economia Política se erguia como fundante de uma teoria social, um elenco articulado de idéias que buscava oferecer uma visão do conjunto da vida social. Os clássicos não se colocavam como cientistas puros, mas tinham claros objetivos de intervenção política e social.

Segunda --> o modo como tratou as principais categorias e instituições econômicas (dinheiro, capital, lucros, salário, mercado, propriedade privada etc): categorias e instituições naturais, eternas e invariáveis na sua estrutura fundamental. Inspiração das concepções próprias do jusnaturalismo moderno, que marcou a teoria política liberal ou o liberalismo clássico.

Compromisso social e político da Economia Política clássica

Liberalismo clássico constituiu uma arma ideológica da luta da burguesia contra o Estado Absolutista e contra as instituições do Antigo Regime; condensou os interesses da burguesia revolucionaria que se confrontava com os beneficiários da feudalidade: a Nobreza fundiária e a Igreja.
A influência jusnaturalista e liberal não são um acaso, mas sinalizam que a Economia Política insere-se num quadro maior da Ilustração; importante capítulo no processo pelo qual a burguesia avança para a construção de seu domínio de classe; o que assinalou, em face da feudalidade, um gigantesco progresso histórico.

A Economia Política clássica expressou o ideário da burguesia num período em que esta classe estava na vanguarda das lutas sociais, conduzindo o processo revolucionário que destruiu o Antigo Regime.

Crise e dissolução da Economia Política clássica. Crise dos ideais da burguesia revolucionária. Alteração da relação entre burguesia e cultura ilustrada.

Cultura ilustrada: projeto de emancipação humana que foi conduzido pela burguesia revolucionária, resumido na célebre consignação “liberdade, igualdade e fraternidade”. A emancipação possível sob o regime burguês não é a emancipação humana, mas somente a emancipação política. Houve emancipação dos homens das relações de dependência pessoal vigentes na feudalidade; mas não houve igualdade econômico-social, e sem esta a emancipação humana é impossível.

A Revolução burguesa não conduziu ao prometido “reino da liberdade”: conduziu a uma ordem social mais livre que a anterior, mas que continha limites, com uma nova dominação de classe.

A burguesia renuncia aos seus ideais emancipadores e converte-se em classe conservadora, neutralizando ou abandonando conteúdos mais avançados da cultura ilustrada. Novo cenário de confrontos: não mais burguesia x nobreza; mas burguesia x trabalhadores. Dois protagonistas começam a se enfrentar diretamente: a burguesia conservadora e o proletariado revolucionário.

A burguesia abandona os principais valores da cultura ilustrada e ingressa no ciclo da sua decadência ideológica, marcado pela sua incapacidade de classe de propor alternativas emancipadoras; a herança ilustrada passa às mãos do proletariado, o sujeito revolucionário. A Economia Política clássica torna-se incompatível com os ideais da burguesia conservadora.

Desuso da expressão “Economia Política”. Dissolução da Economia Política clássica: duas linhas de desenvolvimento teórico excludentes: investigação conduzida por pensadores da ordem burguesa e pelos intelectuais vinculados ao proletariado. No primeiro, a expressão é abandonada e substituída pela nominação mais simples de “Economia”; no segundo, “Crítica da Economia Política”.

Economia: disciplina científico-acadêmica estritamente especializada, técnica, depurada de preocupações históricas, sociais e políticas, que serão passadas para outras ciências sociais; adequada à ordem social da burguesia conservadora, torna-se instrumental, desenvolvendo enorme arsenal técnico; renuncia a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social; ruptura em face da Economia Política clássica, tornando-se um importante instrumento de administração, manipulação e legitimação da ordem burguesa. Toma a ordem burguesa e suas categorias econômicas como naturais, imutáveis e invariáveis.

Crítica da Economia Política: a sociedade burguesa não é uma organização natural; é uma forma de organização social histórica, transitória. Vínculo com a cultura ilustrada; superação da Economia Política clássica, incorporando suas conquistas, mostrando seus limites e equívocos. Historiciza as categorias econômicas, rompendo a naturalização que as pressupõe como eternas; análise das leis do movimento do capital, base para apreender a dinâmica da sociedade capitalista, cujo conjunto de relações sociais está subordinado ao comando do capital. Uso do método crítico-dialético (materialismo histórico).

A Economia Política é a ciência das leis que regem a produção e a troca dos meios materiais de subsistência na sociedade humana. O objeto da Economia Política não é simplesmente a produção, mas as relações sociais que existem entre os homens na produção, a estrutura social da produção. O objeto da Economia política é a atividade econômica, ou seja, a produção e a distribuição dos bens com os quais os homens satisfazem as suas necessidades individuais ou coletivas; essa produção e distribuição constituem o processo econômico, e o objetivo da economia política é estudar as leis sociais que regulam esse processo.

Economia Política --> ciência das leis sociais da atividade econômica.


quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A Questão Social no Brasil


 A Questão Social no Brasil 
- os direitos econômicos e sociais
como direitos fundamentais -

Maria Victoria Benevides(socióloga, professora da Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo)

A Constituição brasileira vigente, dita “Cidadã” e promulgada após intensa participação popular, estabelece como objetivos da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º). Como fundamentos do Estado democrático de Direito o texto constitucional afirma a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Os direitos sociais incluem educação, saúde, moradia, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados (art.6º).
Os direitos dos trabalhadores especificam conquistas sociais que em nada ficam a dever às democracias populares socialistas e as democracias progressistas do chamado primeiro mundo (art.7º). [1]
Nossa Carta Magna reflete, assim, uma feliz combinação de direitos humanos e de direitos do cidadão, de tal sorte que lutar pela cidadania democrática e enfrentar a questão social no Brasil praticamente se confunde com a luta pelos direitos humanos – ambos entendidos como resultado de uma longa história de lutas sociais e de reconhecimento, ético e político, da dignidade intrínseca de todo ser humano, independentemente de quaisquer distinções.
Temos uma bela Constituição social o que, sem dúvida, representa um avanço considerável em relação à história de um país regado com sangue de escravos. No entanto, ainda hoje, a realidade brasileira explode em violenta contradição com aqueles ideais proclamados. Sabemos todos que vivemos num país marcado por profunda desigualdade social, fruto de persistente política oligárquica e da mais escandalosa concentração de renda. E, hoje, ainda sofremos um processo de negação dos direitos sociais arduamente conquistados, na medida em que prospera a defesa de um “Estado mínimo”, que abandona o povo à sua sorte e que reduz a cidadania às liberdades civis e políticas, mantendo, em contrapartida, os privilégios dos “de cima” e a brutal carência de direitos dos “de baixo”. O mais recente relatório de indicadores sociais do PNUD coloca o Brasil em 79º lugar. O próprio Banco Mundial, insuspeito de simpatias “esquerdistas”, vem afirmando que a pobreza tem crescido muito devido à globalização econômica - e não o contrário, como apregoam nossos deslumbrados arautos do neoliberalismo.
Pretendo abordar o tema da questão social no Brasil vista do ângulo de sua vinculação com a democracia e os direitos dela decorrentes, com ênfase nos direitos econômicos e sociais, entendidos como direitos humanos fundamentais. Nesse sentido, estarei falando de democracia como, prioritariamente, o regime que propicia a consolidação e a expansão da cidadania social, com a garantia das liberdades e da efetiva e autônoma participação popular.
Democracia é, assim, entendida como o regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos. Esta breve definição tem a vantagem de agregar democracia política e democracia social. Em outros termos, reúne os pilares da “democracia dos antigos”, ou democracia política - tão bem explicitada por Benjamin Constant e Hannah Arendt , quando a definem como a liberdade para a participação na vida pública - e a democracia moderna, embasada no ideal republicano, nos valores do liberalismo político e da democracia social. Ou seja, reúne as exigências da cidadania plena, a única que engloba as liberdades civis e a participação política, ao mesmo tempo que reivindica a igualdade e a prática da solidariedade.
A questão social insere-se no contexto do empobrecimento da classe trabalhadora com a consolidação e expansão do capitalismo desde o início do século 19, bem como o quadro da luta e do reconhecimento dos direitos sociais e das políticas públicas correspondentes, além do espaço das organizações e movimentos por cidadania social. A primeira e inarredável constatação histórica se impõe: até o século 19 os trabalhadores ligados à terra não podiam ser expulsos; tinham, apesar da pobreza, um mínimo de segurança. O capitalismo (“tudo que é sólido desmancha no ar”) destruiu essa proteção social e provocou as hordas de excluídos de toda sorte. Se o Estado do Bem Estar Social - graças às lutas dos trabalhadores e aos ideais socialistas – conseguiu uma certa estabilidade social, com o reconhecimento dos direitos econômicos e sociais, o neoliberalismo veio provocar o segundo ato dessa tragédia: agora aqueles excluídos da terra, que conseguiram se afirmar como trabalhadores pela garantia das prestações sociais do Estado, tudo perdem, já não têm propriedade e são despojados dos direitos econômicos e sociais. São os novos proletários de terço final do século 20.
Historicamente, os direitos econômicos e sociais foram (e, de certa forma, continuam sendo) aqueles dificilmente vieram a ser reconhecidos – isto é, não apenas proclamados mas também acompanhados das devidas e eficazes garantias. São aqueles direitos das classes ou grupos despossuídos, sem poder econômico, sem autonomia cultural, sem poder político.
O primeiro grupo de direitos humanos – os direitos civís e políticos- foram declarados e garantidos contra o sistema de desigualdade de condição jurídica próprio do feudalismo: a divisão estamental.
Correspondem a afirmações da igualdade de direitos individuais, de autonomia do indivíduo contra os grupos sociais que tradicionalmente o abafavam, como a família, a corporação de ofícios, a Igreja, os estamentos. Dissolvida a sociedade estamental e afirmada a autonomia jurídica dos indivíduos, verifica-se, em pouco tempo (a partir do séc.19) que uma nova divisão social se afirmava, agora paradoxalmente sob o manto protetor da igualdade de direitos individuais : a divisão da sociedade em classes proprietárias e classes trabalhadoras, em ricos e pobres. Em 1847, afirmava Alexis de Tocqueville: “a Revolução Francesa, que aboliu todos os privilégios e destruiu os direitos exclusivos, deixou no entanto subsistir um, o da propriedade (...) Dentro em pouco, é entre os que têm posses e os que não têm, que se estabelecerá a luta política; o grande campo de batalha será a propriedade, e as principais questões da política passarão pelas modificações mais ou menos profundas a trazer ao direito de propriedade “(Souvenirs).
Foi contra a ascensão do capitalismo, como modo de vida – isto é, como um novo tipo de civilização na qual tudo se compra e tudo se vende – que se afirmaram os direitos econômicos e sociais, assim como os direitos individuais foram reconhecidos e garantidos contra o feudalismo. Portanto, a idéia central a ser enfatizada é a seguinte: sem a superação do capitalismo, os direitos econômicos e sociais não chegarão a se afirmar e se consolidar, principalmente nas sociedades ditas “periféricas”.
As liberdades individuais – locomoção, habeas-corpus, igualdade de voto, livre associação, segurança – foram o patamar sobre o qual se apoiou o movimento socialista do século 19 para reivindicar os grandes direitos econômicos e sociais. Efetivamente, sem as liberdades civis e políticas, o movimento sindical teria tido enorme dificuldade para se desenvolver. Os burgueses queriam a liberdade de associação para eles, mas não para os trabalhadores - e sabiam que estavam exteriorizando uma contradição injusta, do ponto de vista ético e jurídico.
É bastante conhecida a distinção histórica em gerações, ou dimensões dos direitos humanos, a partir do século 18, com os direitos individuais, os sociais e os coletivos da humanidade. No entanto, se para os países do primeiro mundo faz sentido essa sucessão histórica de direitos, para nós a questão se coloca de outra forma. Nunca tivemos uma “revolução burguesa”, no sentido de que as classes proprietárias não lutaram em defesa de liberdades civis e políticas que lhes tivessem sendo negadas (ver, a respeito, a análise de Sérgio Buarque de Hollanda quando afirma que, no Brasil, “a democracia sempre foi um lamentável mal-entendido”). Em nosso país, a consciência da dignidade humana na liberdade, na igualdade, na solidariedade nasceu ao mesmo tempo, de um só golpe, no século 20. É fato inegável, ademais, que sempre tivemos a supremacia dos direitos políticos sobre os direitos sociais. Criamos o sufrágio universal - o que é, evidentemente, uma conquista - mas, com ele, criou-se também a ilusão do respeito pelo cidadão. A realização periódica de eleições convive com o esmagamento da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões. Portanto, é possível afirmarmos que, ao contrário dos países europeus e da América do Norte, aqui ao sul do Equador os direitos econômicos e sociais são a condição essencial para a realização  das liberdades.. Ou seja, os direitos econômicos e sociais são, para nós, a condição da democracia, e não o contrário.
O grande problema dos direitos humanos é a sua não-efetividade, pois sua defesa dependerá sempre da institucionalização de um sistema de poder, de uma posição de poder na sociedade. Objeto dos direitos econômicos e sociais são políticas públicas ou programas de ação governamental, que visam a suprimir carências sociais. Os titulares desses direitos são os grupos carentes ou despossuídos – como sujeito coletivo, ou individualmente, para todas as pessoas que os compõem. É o que ocorre, por exemplo, com os direitos trabalhistas – de fruição coletiva e individual – e dos direitos em matéria de acesso ao ensino fundamental (ver Constituição Federal, art.208). O sujeito passivo de tais direitos sociais é o Estado, ou os particulares que detêm poder econômico – também no caso dos direitos trabalhistas e do direitos de acesso à propriedade.
É importante assinalar que os direitos fundamentais, justamente por serem direitos já reconhecidos e proclamados oficialmente – em nossa Constituição e em todas as convenções e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário – não podem ser revogados por emendas constitucionais, leis ou tratados internacionais posteriores. Os projetos de emenda constitucional da Presidência da República, no sentido do desmanche dos direitos trabalhistas é, portanto, inconstitucional. Isso significa que, além de naturais, universais e históricos, os direitos humanos são, também, indivisíveis e irreversíveis. São irreversíveis porque à medida que são proclamados, tornando-se direitos positivos fundamentais, não podem mais ser revogados. São indivisíveis porque, numa democracia efetiva, não se pode separar o respeito às liberdades individuais da garantia dos direitos sociais; não se pode considerar natural o fato de que o povo seja livre para votar mas continue preso às teias da pobreza absoluta.[2]
Dado o caráter inorgânico dos grupos sociais carentes no Brasil, um problema central diz respeito à necessidade de organização e de representação ; daí avulta o papel dos sindicatos, em relação à categoria dos trabalhadores, mesmo os não sindicalizados. Dentre as garantias judiciais , organizadas oficialmente, destacam-se o dissídio coletivo trabalhista,a ação civil pública, proposta pelo Ministério Público ou, excepcionalmente, por ONG (cuja legitimidade deve ser alargada, aliás) e a desapropriação para reforma agrária. Outra garantia judicial, não organizada oficialmente, é a ação direta de inconstitucionalidade em relação a políticas públicas determinadas. Dentre as garantias não-judiciais, temos aquelas reconhecidas oficialmente, como a greve, a Previdência Social, o sistema público de educação e o sistema único de saúde. Dentre as não-reconhecidas oficialmente (o que não significa que sejam ilegalidades ), está a ocupação de terras para produção agrícola ou de imóveis para habitação.
A cidadania democrática pressupõe a igualdade diante da lei, a igualdade da participação política e a igualdade de condições sócio-econômicas básicas, para garantir a dignidade humana. Essa terceira igualdade é crucial, pois exige uma meta a ser alcançada, não só por meios de leis, mas pela correta implementação de políticas públicas, de programas de ação do Estado. É aqui que se afirma, como necessidade imperiosa, a organização popular para a legítima pressão sobre os poderes públicos. A cidadania ativa pode ser exercida de diversas maneiras, nas associações de base e movimentos sociais, em processos decisórios na esfera pública, como os conselhos, o orçamento participativo, iniciativa legislativa, consultas populares.
É importante deixar claro que a participação cidadã em entidades da sociedade civil não significa aceitar a diminuição do papel do Estado – este continua sendo o grande responsável pelo desenvolvimento nacional com a garantia efetiva dos direitos dos cidadãos. O êxito eventual de algumas parcerias, de obras do chamado “terceiro setor”, não pode obscurecer essa realidade. É dos poderes públicos que devem ser cobradas, por exemplo, as novas propostas de cidadania social, como os programas de renda mínima, de bolsa-escola, de banco do povo, de polícia comunitária, de saúde pública, de política agrária etc.
É conhecida a relação muitas vezes vista como dilemática entre igualdade e liberdade. Ora, os direitos civis e políticos exigem que todos gozem da mesma liberdade, mas são os direitos sociais que garantirão a redução das desigualdades de origem, para que a falta de igualdade não acabe gerando, justamente, a falta de liberdade. Por sua vez, não é menos verdade que a liberdade propicia as condições para a reivindicação de direitos sociais. Um exemplo histórico do direito social à educação parece-me eloqüente. Já em abril de 1792, Condorcet alertava, no Relatório sobre a Instrução Pública apresentado à Assembléia Legislativa : “os direitos humanos permanecerão formais se não se firmarem na base da igualdade efetiva dos indivíduos em relação à Educação e à Instrução”. É nesse sentido, aliás, que se posicionam todos os críticos das “mistificações igualitárias”, presentes nas teses das “oportunidades iguais” na escola, apesar do abismo das diferenças sociais.
Para se discutir a consciência de cidadania social numa determinada sociedade é necessário partir do reconhecimento da distância que separa, por um lado, leis e princípios fundantes de liberdades e direitos e, por outro lado, a própria consciência de tais direitos, além da existência (ou não) dos mecanismos institucionais e dos recursos para garantir a sua prática, ou a sua fruição. O reconhecimento dessa distância provoca, num primeiro momento, as seguintes indagações: em que espaços é exercida a reivindicação de direitos? A partir de quais relações sociais? Frente a quais instituições? Em relação a que demandas? (E. Jelin, 1994). Torna-se evidente, portanto, que a idéia de cidadania, assim como a de direitos, estão sempre em processo de construção e de mudança. Isso significa que não podemos congelar, num determinado período ou numa determinada sociedade, uma lista fechada de direitos específicos. Tal lista será sempre passível de transformação, sempre historicamente determinada. Como assinalou Hannah Arendt, o que permanece inarredável, como pressuposto básico, é o direito a ter direitos.
Percebe-se, assim, como a relação entre cidadania social e democracia explicita-se também no fato de que ambas são processos. Os cidadãos numa democracia não são apenas titulares de direitos já estabelecidos - mas existe, em aberto, a possibilidade de expansão, de criação de novos direitos, de novos espaços, de novos mecanismos. O processo, portanto, não se dá no vácuo. Lembra Marilena Chauí que a cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação, órgãos dos poderes públicos e mecanismos de participação popular (como conselhos, orçamento participativo, consultas populares como referendos e plebiscitos e a prática da iniciativa popular legislativa). Distingue-se, portanto, a cidadania passiva - aquela que é outorgada pelo Estado, com a idéia moral da tutela e do favor - da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas essencialmente participante da esfera pública e criador de novos direitos para abrir espaços de participação.
A expansão da cidadania social implica, além de uma ação efetiva dos poderes públicos e da pressão popular, num tipo de mudança cultural, no sentido de mexer com o que está mais enraizado nas mentalidades marcadas por preconceitos, por discriminação, pela não aceitação dos direitos de todos, pela não aceitação da diferença. Trata-se, portanto, de uma mudança cultural especialmente importante no Brasil, pois implica a derrocada de valores e costumes arraigados entre nós, decorrentes de vários fatores historicamente definidos: nosso longo período de escravidão, que significou exatamente a violação de todos os princípios de respeito à dignidade da pessoa humana, a começar pelo direito à vida; nossa política oligárquica e patrimonial; nosso sistema de ensino autoritário, elitista, e com uma preocupação muito mais voltada para a moral privada do que para a ética pública; nossa complacência com a corrupção, dos governantes e das elites, assim como em relação aos privilégios concedidos aos cidadãos ditos de primeira classe ou acima de qualquer suspeita; nosso descaso com a violência, quando ela é exercida exclusivamente contra os pobres e os socialmente discriminados; nossas práticas religiosas essencialmente ligadas ao valor da caridade em detrimento do valor da justiça; nosso sistema familiar patriarcal e machista; nossa sociedade racista e preconceituosa contra todos os considerados diferentes; nosso desinteresse pela participação cidadã e pelo associativismo solidário; nosso individualismo consumista, decorrente de uma falsa idéia de “modernidade”.
É bem provável que os mais jovens aqui presentes jamais tenham ouvido algo sobre uma certa “democracia da gravata lavada”. No entanto, essa expressão já sintetizou, em dado período de nossa história, o sonho de construção de uma “sociedade ordeira e feliz”. Há quase um século e meio, o liberal mineiro Teófilo Otoni, por exemplo, proclamava a causa da “democracia da gravata lavada, a democracia pacífica da classe média, letrada e asseada, a única merecedora do gozo dos direitos políticos da cidadania” (Campanha do lenço branco, 1860).
Podemos sorrir dessa lembrança antiga, embora ela não reflita apenas uma curiosidade histórica: ainda hoje convivemos com a discriminação contra todos aqueles que não se encaixam no padrão excludente de “letrados e asseados” e, portanto, não são considerados cidadãos com plenos direitos. Há poucos anos  ouvimos de autoridade paulistana que “a prefeitura só pode atender aqueles que pagam impostos”, e, assim, se justificaria o abandono de importante parcela do povo vítima de enchentes e desabamentos. São também freqüentes as ocasiões em que se propõe a mutilação da cidadania por vários motivos - desde a cor da pele até o grau de instrução (ainda há, por exemplo, quem condene o voto do analfabeto!), passando pelo não-direito dos jovens aos cursos supletivos, pois a “educação de adultos” deixou de ser responsabilidade governamental (vide a emenda 14 à Constituição).
A mudança cultural necessária deve levar ao enfrentamento de herança histórica tão pesada e ainda ser instrumento de reação a duas grandes deturpações que fermentam em nosso meio social – como parte de uma certa “cultura política”- em relação ao entendimento do que sejam os direitos fundamentais do ser humano. A primeira delas, muito comentada atualmente e bastante difundida na sociedade, inclusive entre as classes populares, refere-se à identificação entre direitos humanos e “direitos dos bandidos”. Essa deturpação decorre certamente da ignorância e da desin- formação mas também de uma perversa e eficiente manipulação, sobretudo nos meios de comunicação de massa, como ocorre com certos programas de rádio e televisão, voltados para a exploração sensacionalista da violência e da miséria humana.
A segunda deturpação, evidente nos meios de maior nível de instrução (meio acadêmico, mas também de políticos e empresários), refere-se à crença de que direitos humanos se reduzem essencialmente às liberdades individuais do liberalismo clássico e, portanto, não se consideram como direitos fundamentais os direitos sociais, os direitos de solidariedade universal. Nesse sentido, os liberais adeptos dessa crença aceitam a defesa dos direitos humanos como direitos civís e políticos, direitos individuais à segurança e à propriedade; mas não aceitam a legitimidade da reivindicação, em nome dos direitos humanos, dos direitos econômicos e sociais, a serem usufruídos individual ou coletivamente, ou seja, aqueles vinculados ao mundo do trabalho, à educação, à saúde, à moradia, à previdência e seguridade social etc.
É contra tal quadro histórico e com tais deturpações - muitas vezes conscientes e deliberadas, de grupos ou pessoas interessadas em desmoralizar a luta pelos direitos humanos, porque querem manter seus privilégios ou porque querem controlar e usar a violência, sobretudo a institucional, apenas contra os pobres, contra aqueles considerados “classes perigosas”- que se dirige a luta pela nova e ampliada cidadania social.
Finalmente, gostaria de concluir levantando uma questão de ordem prática, relativa às possibilidades de transformação e de militância política. Partindo do pressuposto de que o socialismo não morreu – seus ideais continuam vivos e atuantes – pergunto qual deveria ser a opção das esquerdas no Brasil hoje.
Penso que as esquerdas poderiam se unir a partir de uma plataforma comum com dois eixos : 1) a crítica incisiva do capitalismo em sua fase mais selvagem de “globalização”, visando à sua superação; 2) a conquista da democracia efetiva e, em específico, da participação popular. Os dois eixos convergem no compromisso com a promoção dos direitos humanos e ideais humanistas, com ênfase nos direitos econômicos e sociais, aqueles historicamente consagrados nas lutas socialistas, o que já garante um mínimo de consenso entre as esquerdas de origem vária.
Quanto ao primeiro ponto, trata-se de denunciar, com o máximo rigor, a incompatibilidade entre democracia e capitalismo. Estou convencida de que, ao invés da tradicional aliança com a democracia liberal, o capitalismo hodierno mantém um casamento perfeito com o poder oligárquico - foram feitos um para o outro. Seu rebento mais notável é esse “neoliberalismo”, que de maneira absolutamente insana vem transformando os pobres em miseráveis e descartáveis. Nenhuma forma de democracia pode conviver com tal nível de exclusão social. No Brasil, esse verdadeiro “horror econômico” aparece no desmanche das mínimas garantias de seguridade social, como nas indecentes propostas de reforma da Previdência ou na defesa das vantagens do trabalho informal e “temporário”. Cabe às esquerdas insistir na solidariedade social como valor e como exigência inarredável da democracia. Não se trata mais de “humanizar o capitalismo”, pois no estágio atual isso já é impossível. Trata-se de propor sua superação por um sistema que combine a democracia participativa com eficientes instrumentos de proteção social (há várias formas em discussão, desde a renda mínima à reforma agrária , passando pelo banco popular para minicrédito e por novas políticas publicas de saúde e educação, aqui destacando-se o projeto da bolsa escola, o qual tem sido citado até pelo Presidente da República).
Quanto ao segundo eixo, sabemos que, mesmo entre nós, identificados com a herança generosa da revolução por “liberdade, igualdade, fraternidade”, a adesão concreta às práticas e instituições democráticas tem sido francamente insuficiente. Mas cabe às esquerdas, vítimas preferenciais da repressão no regime militar, lutar contra a doença mais grave de nosso sistema político, o abuso do poder. Contra esse mal só existe um remédio: voltar às raízes da democracia como soberania popular e cidadania ativa. Isto é, devolver ao povo o poder decisório que, em tese, é seu. Nesse sentido, o orçamento participativo do Partido dos Trabalhadores, o PT, é parte indis- pensável de programa comum das esquerdas. É evidente que outras práticas de demo- cracia participativa devem ser ampliadas, como os conselhos, as iniciativas legis- lativas e os plebiscitos, além do apoio explícito aos movimentos sociais e populares.
O abuso do poder é mais evidente na instância executiva. Uma das características de nossa história republicana é a tendência a se perverter o sistema presidencial de governo em dominação caudilhesca do Presidente da República - aquele “presidencialismo imperial” tão denunciado pelos atuais governantes quando, na oposição, defendiam o parlamentarismo. Lutar contra isso, hoje, é um dever funda-mental das esquerdas, se quiserem, ao vencer, exercer o poder democraticamente.
A principal questão permanece: para que unir as esquerdas em torno de um projeto eleitoral? Se for para continuar o mesmo jogo da política oligárquica, não vale a pena. Precisamos dizer, claramente, que queremos ganhar para mudar, tanto no enfrentamento do capitalismo “realmente existente” (o verdadeiro capitalismo selvagem) quanto na superação da contrafação democrática que vem sendo imposta pelo neoliberalismo triunfante.
A solidariedade é, hoje, mais urgente do que nunca. Significa que todos somos responsáveis pelo bem comum. Considero, portanto, como extremamente perigoso (por mais que entenda suas causas) o descrédito do povo nas instituições políticas, pois isso ultrapassa a figura das pessoas, dos governantes e parlamentares, para atingir o próprio cerne da ação política, acaba se transformando num descrédito na ação política e na sua capacidade transformadora. Não é possível ser cidadão consciente com rejeição à atividade política. O resultado da apatia pode ser uma atitude na vida social que é o oposto de qualquer idéia de cidadania democrática, que é o das estratégias individuais, do “salve-se quem puder”, da “justiça pelas próprias mãos”, excluindo qualquer possibilidade de ação coletiva, de solidariedade. Mas, como digo aos meus alunos, sou professora, logo... sou otimista. O pensador italiano Antonio Gramsci afirmava que “devemos ser pessimistas no diagnóstico, mas otimistas na ação”. Acompanho a criação de associações de luta em torno de interesses públicos e a atuação de movimentos sociais de grande importância – como o MST, Movimento dos Trabalhadores sem Terra - assim como percebo o crescimento constante da consciência política do povo (haja vista as recentes eleições em São Paulo e no país, com a vitória da oposição e do PT) e um novo entusiasmo na juventude para a participação cidadã.
Participo de novos projetos de educação em direitos humanos e para a cidadania e, há dez anos, faço parte da direção da Escola de Governo – escola de formação política, baseada nos princípios da democracia participativa, da ética na política, do compromisso com o desenvolvimento nacional e do respeito aos direitos humanos. “Para conjurarmos o risco da consolidação da barbárie”, escreve Fábio Konder Comparato – “precisamos construir urgentemente um mundo novo, uma civilização que assegure a todos os seres humanos, sem embargo das múltiplas diferenças biológicas e culturais que os distinguem entre si, o direito elementar à busca da felicidade”. Será pedir muito para o povo brasileiro?
No Brasil, a esperança é uma virtude revolucionária. Esta, como uma exigência contra a destruição feita pelo capitalismo predador neste mundo “globalizado” pelo mais perverso neoliberalismo econômico, é o grande desafio para o século 21.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah - Da Revolução, São Paulo: Ática, 1988.
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita - A Cidadania Ativa. São Paulo: Ática, 1991.
----- - Cidadania e Democracia, in Lua Nova, nº33,1994.
----- - Cidadania e Direitos Humanos, in Cadernos de Pesquisa, Fund. Carlos Chagas, nº 104, julho 1998.
CHAUÍ, Marilena - Cultura e Democracia. São Paulo: Moderna, 1984.
COMPARATO, Fábio Konder - "A Nova Cidadania", in Lua Nova, 28/29, 1993, pp. 85-106.
----------- - A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, São Paulo: Saraiva, 1999.
----------- - A Humanidade no século a grande opção, Univ. de Coimbra, fev.2000. Publ. na revista Praga.
JELIN, Elizabeth - "A Cidadania desde baixo", in Lua Nova, 32, 1994
TOCQUEVILLE, Alexis de - Souvenirs

Notas
[1] O direito à moradia é conquista recente, tendo sido incluído pela emenda constitucional nº26, de 14/02/2000.
[2] Ver resolução nº32/130 da ONU, de 1977 que estabelece : “é impossível a realização dos direitos civis políticos sem o usufruto dos direitos econômicos , sociais e culturais”.

Fonte: http://www.hottopos.com/vdletras3/vitoria.htm

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Cultura do Ponto de Vista Antropológico


Laplantine, Laraia e Geertz - Antropologia e Cultura

RESUMO:

A partir da leitura e análise das obras de Geertz, Laplatine e Laraia, procurar-se-á entender o processo de constituição e consolidação da antropologia moderna, tendo como ponto referencial de análise o conceito de cultura, entendido enquanto seu principal objeto de estudo.

DESENVOLVIMENTO:

Mesmo que de maneira inconsciente, o homem sempre procurou refletir sobre a sua humanidade, reflexão esta que se acelerou a partir do momento em que esta mesma humanidade, entenda-se aqui a Europa Ocidental, se deparou com a alteridade. Este "choque" num primeiro momento, não propiciou o alargamento da visão humana, mas pelo contrário criou condições propícias para o desenvolvimento de uma concepção etnocêntrica, como bem revela a citação seguinte,
"Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros". (LARAIA, 2003)
Com as Grandes Navegações, iniciadas no século XVI, a Europa Ocidental entra em contato com os habitantes do "Novo Mundo", e essa descoberta da alteridade leva estes ocidentais a uma dupla resposta ideológica que traz, como pano de fundo, a dificuldade em enxergar a diversidade das sociedades. De um lado, estes habitantes são incorporados na figura do mau selvagem, base de sustentação da ideologia colonizadora e, por um outro lado, a partir da figura do bom selvagem de Rousseau, inicia-se a crítica da civilização e o elogio da "ingenuidade original". A repulsa se transforma em fascínio, mas os termos de atribuição e a estrutura permanecem os mesmos.
O importante é identificar no Renascimento a gênese da interrogação sobre a existência múltipla do homem, interrogação esta que sofrerá um processo de profunda reflexão apenas com o advento do século XIX. Com efeito, é neste século que se constitui verdadeiramente a antropologia enquanto disciplina autônoma: a ciência dassociedades primitivas em todas as suas dimensões.
Esta antropologia nasceu a partir de uma teoria que se empenhava em reforçar a concepção etnocêntrica dos critérios ocidentais como padrões para a natureza humana. Tal teoria, denominada evolucionismo, procurava afirmar a existência de uma espécie humana idêntica que, apesar de se desenvolver em ritmos desiguais, acabaria passando pelas mesmas etapas, para alcançar o nível final que é o da "civilização". Um dos pontos positivos do evolucionismo encontra-se no fato de ter mostrado que as diferenças culturais entre os grupos humanos não eram conseqüência de predisposições congênitas ou climáticas, como pregavam os adeptos do determinismo biológico ou geográfico, respectivamente. Neste ponto, torna-se interessante ressaltar o quanto estas teorias, sobretudo a do determinismo biológico estão presentes no imaginário popular.

"Tenho a física no meu sangue" – dizia uma aluna que pretendia mudar a sua opção de ciências sociais para a de física, invocando o nome de um ancestral. "Meu filho tem muito jeito para a música, pois herdou esta qualidade do seu avô". [Agindo dessa forma], Cesare Lombroso (1835-1909), criminalista italiano, (...) procurou correlacionar aparência física com tendência para comportamentos criminosos. (...) Teoria [que] encontrou grande receptividade popular e, até recentemente, era ministrada em alguns cursos de direito como verdade científica. (...). (LARAIA, 2003)

A principal reação ao evolucionismo se iniciou com Franz Boas (1858-1949). Um dos pais fundadores da etnografia, Boas desenvolveu o particularismo histórico, segundo o qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou.
Na primeira parte de seu livro, LARAIA expõe o desenvolvimento, na antropologia, do conceito de cultura a partir das manifestações iluministas até os autores modernos. Procurando traçar um antecedente histórico deste conceito, o autor cita o pensamento de Edward Tylor(1832-1917), primeiro a empreender tal formulação,

"Tomado em seu amplo sentido etnográfico é este [conceito de cultura] todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade". Com esta definição, Tylor (...) marca fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (LARAIA, 2003)

A partir deste momento, prossegue o autor, as centenas de definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os limites do conceito. A principal tarefa da antropologia moderna seria a de reconstrução, a partir de uma diversidade de fragmentos teóricos. Dentro deste contexto é que chegarmos ao ano de 1.973, quando GEERTZ escreveu que o tema mais importante da moderna teoria antropológica era o de diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente.
Autor de uma vasta obra, este antropólogo norte-americano discorre sobre a prática etnográfica, com o objetivo de reduzir o conceito de cultura, tornando-o mais específico. Sobre a prática antropológica, esclarece a necessidade de não apenas captar fatos, mas esclarecer os mesmos, reduzindo-se a perplexidade ou, em outras palavras, familiarizando o exótico.

Aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é infinitamente problemático. [Estranhamento é a] perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação doolhar que se tinha sobre si mesmo. (...) Aos poucos notamos que o menor de nossos comportamentos (...) não tem realmente nada de "natural". (...) O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. (LAPLANTINE, 1988)

Um outro perigo na atividade antropológica seria o de querer capturar o mundo amplo (essência das sociedades nacionais, civilizações ou grandes religiões) no pequeno(cidades e aldeias "típicas"). Essas reflexões suscitam a interrogação sobre a atividade do etnógrafo. Para GEERTZ,
O que inscrevemos (...) [é] apenas àquela pequena parte do discurso social que os nossos informantes nos podem levar a compreender. (GEERTZ, 1989)

Admitindo a cultura como algo público, ressalta que a principal desordem teórica da antropologia contemporânea encontra-se em conceber a cultura como localizada na mente e no coração dos homens.
A cultura é pública porque o significado o é. Você não pode piscar (...) sem saber o que é considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas pálpebras. (...) Mas tirar de tais verdades a conclusão de que saber piscar é piscar (...) é revelar uma confusão tão grande... (GEERTZ, 1989)

Um outro ponto trabalhado por Geertz diz respeito à diversidade cultural. Com efeito, uma das tarefas da antropologia que se forjou nos braços do iluminismo era a de "estabelecer uma escala de civilização", colocando as nações européias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto da humanidade entre estes dois limites. Sobre este ponto, também LARAIA nos fala:
Predominava (...) a idéia de que a cultura desenvolveu-se de maneira uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade percorresse as etapas que já tinham sido percorridas pelas "sociedades mais avançadas" (...) Etnocentrismo e ciência marchavam de mãos juntas. (LARAIA, 2003)

Mais uma vez o ponto em pauta é a teoria evolucionista, agora revelada em sua característica discriminatória, com nítida vantagem para as culturas européias. O autor reconhece que existe uma grande variação natural de formas culturais, reconhece que esta variação é o grande recurso da antropologia, mas que este recurso não é devidamente utilizado e, finalmente, lança a questão sobre de que maneira tal variação pode enquadrar-se com a unidade biológica da espécie humana.
No segundo capítulo de seu livro, Geertz tenta esclarecer a natureza humana, tomando como ponto de partida a perspectiva iluminista, ilusória, de uma natureza humana constante. A antropologia moderna, por sua vez, traz a firme convicção de que não existem de fato homens não modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram e não o poderiam pela própria natureza do caso.
O autor afirma que as reformulações do conceito da cultura e do papel da cultura na vida humana produzem uma definição de homem. A perspectiva tradicional acredita que o ser físico do homem evoluiu até seu limite máximo e que, a partir deste momento, iniciou-se o desenvolvimento cultural. Dentro desta perspectiva, o homem teria se tornado homem quando foi capaz de transmitir "conhecimento, crença, lei, moral, costume" a seus descendentes e seus vizinhos através do aprendizado. Contrapondo-se a esta idéia, Geertz afirma que a cultura foi um ingrediente, essencial, na produção desse mesmo animal, em vez de ser acrescentada a um animal acabado.

Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os homens sem cultura (...) seriam monstruosidades incontroláveis com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto. (...) Como nosso sistema nervoso central [cérebro] cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida pelos sistemas de símbolos significantes. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens. (GEERTZ, 1989)

A fronteira entre o que é controlado de forma inata e o que é controlado culturalmente no comportamento humano é extremamente mal-definida e vacilante. O homem não pode ser definido nem apenas por suas habilidades inatas, como fazia o iluminismo, nem apenas por seu comportamento real, como o faz grande parte da ciência social contemporânea, mas sim pelo elo entre eles, pela forma em que o primeiro é transformado pelo segundo.
O ensaio "O Crescimento da Cultura e a Evolução da Mente", coloca os principais argumentos de Geertz contrários a interpretação fechada da cultura e da mente humana. O texto é dividido em quatro seções, nas quais se descreve a maneira como a mente foi tratada pela ciência cognitiva, antes de 1963, enquanto se ataca a posição falaciosa da antropologia etnocêntrica. Em seguida, um ponto de vista gradualista da evolução natural humana (teoria da unidade psíquica da humanidade) é defendido contra a tendência a favor de uma mudança abrupta dos estágios biológicos para os sócio-culturais (teoria do "ponto crítico"). Na terceira parte, os limites da explicação neurofisiológica são apontados e o controle cultural sobre a atividade mental é esboçado, para, finalmente, concluir pela existência de uma estrutura simbólica pública capaz de explicar adequadamente o desenvolvimento cultural e a evolução mental.

A tese que mantém a evolução mental e a acumulação cultural como dois processos inteiramente separados, estando o primeiro basicamente completo antes que se iniciasse o segundo, é incorreta em si mesma. (GEERTZ, 1989)

Os debates indicam não ser aconselhável a forma padronizada de tratar em série os parâmetros biológico, social e cultural – sendo o primeiro tomado como anterior ao segundo, e o segundo anterior ao terceiro. Esses níveis devem ser vistos como inter-relacionados reciprocamente e considerados em conjunto.
Ao definir cultura, GEERTZ a relata como sistema ordenado de significado e símbolos, nos termos dos quais os indivíduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus julgamentos. Não apenas as idéias, mas as próprias emoções são, no homem, artefatos culturais. Na segunda parte de seu livro, LARAIA mostra, de uma maneira mais prática, como a cultura influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade, apesar de sua comprovada unidade biológica. Condicionando a visão do homem, a cultura leva-o, por exemplo, a reagir de maneira negativa com aqueles que fogem aos padrões de comportamentos aceitos pela maioria da comunidade.

O fato de o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conseqüência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. (...) Tais crenças contêm o germe do racismo, da intolerância, e, freqüentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. (LARAIA, 2003)

Este costume de discriminar os que são diferentes, porque pertencem a outro grupo, pode ser encontrado mesmo dentro de uma sociedade. Além disso, a cultura pode ainda condicionar aspectos biológicos e até mesmo decidir sobre a vida e a morte dos membros do sistema. Determinadas doenças psicossomáticas são fortemente influenciadas pelos padrões culturais.
Um outro ponto relevante de discussão refere-se ao fato de que nem todos os indivíduos participam de maneira homogênea de sua cultura. Sendo sua participação limitada; não existe a possibilidade de um indivíduo dominar todos os aspectos de sua cultura. O importante, porém, é que exista um mínimo de participação e de conhecimento por parte de determinado indivíduo do processe cultural do qual ele faz parte, e que este conhecimento mínimo seja partilhado por todos os componentes da sociedade de forma a permitir a convivência dos mesmos.
Cada sistema cultural está sempre em mudança. Ter esta compreensão é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir.
A discussão não terminou – continua ainda –, e provavelmente nunca terminará, pois uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana.



Laplantine, Laraia e Geertz - Antropologia e Cultura. Disponível em: <http://analgesi.co.cc/html/t11867.html>. Acesso em: 06 Mai. 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Oração do Assistente Social


"Pois é, Senhor,
as necessidades do meu próximo são tamanhas,
meu propósito de ser uma facilitadora tão honesto,
mas há momentos quando sinto meu coração pulsar mais rápido,
mais forte diante do sempre novo,
diante do inusitado.
Pois é, meu Pai,
todos pedem soluções, e eu olho para Ti;
eu Te peço a Fé, a Esperança e o Amor.
São as virtudes expressas na Tua Palavra,
ao lado do bendito fruto do Espírito,
tão próprio de quem abraça esta vocação:
o Amor (expressivo reforço), a Alegria, a Paz,
a Paciência, a Benignidade e a Bondade,
a Fidelidade, a Mansidão e o Autodomínio.
Não podia ser diferente:
eu sou a Assistente Social.
Peço Tua ajuda.
Sempre.
Por Cristo Jesus.
Amém."